Viagens
Pigmentadas
Tradução
: Francisco LIMA
Ao longo de viagens de Buenos Aires a Tóquio, ao passar por Nova York, Riga, Sydney, Bancoque, Kaikoura, Montreal, Tunis... até Ourense ou Iguaçu, a viagem alimenta-se de encontros plásticos e participa da criação de trajetórias. O espetador-ator do seu percurso ou o viajante sensorial observa, apalpa, experimenta os materiais e, por estes seus percursos sensoriais, cria para si mesmo um itinerário que lhe é pessoal através desta viagem pigmentada. Os meus passos artísticos inscrevem-se numa tradição iconográfica os quais consistem em colecionar os materiais numa primeira etapa, fazer um conjunto numa segunda, como os novos realistas para quem a vida real importa na arte. Igualmente numa piscadela aos cadernos de viagem de Delacroix, que, por uma das primeiras vezes, na história de arte, incorpora recordações das suas estadias no Oriente, misturando os textos às imagens e as aguarelas aos herbários. Picasso, o primeiro, através da sua natureza morta com cadeira de palha, em 1912, porá em questão a estrutura das superfícies dos quadros ao introduzir materiais e técnicas, em princípio, ausentes na pintura artística.
Na minha pesquisa plástica, a mistura dos meios articula-se entre duas e três dimensões, a pintura que se casa com a fotografia e a escultura que se torna pintura. Citemos os pictoralistas do princípio do século, Arnulf Rainer ou ainda Pierre e Gilles que pintam na fotografia e fazem evoluir o olhar sobre esta, mas sobretudo na utilização do seu suporte. Os baixos relevos apresentam diferentes materiais coligidos, depois reunidos, ao longo de diferentes viagens efetuadas pelos cinco continentes, e isto numa trintena países. Os materiais naturais ou artificiais, lembranças ou fotografias de recordação, são apresentados ou representados, confrontados, confundidos, casados entre si, os quais permitem estabelecer correspondências visuais.
Os materiais recolhidos nos quatro cantos do mundo são, em seguida, integrados e reunidos num conjunto: um baixo relevo que sugere a quem o olha, percorrer o seu itinerário. Um percurso tátil, olfactivo, visual, gustativo ou auditivo segundo aquele que o percorre. As correspondências entre os sentidos são possíveis e a arte torna-se, assim, um meio de percepção sinestésica.
Os diferentes papéis, quer sejam de jornais, seda, bilhetes ou fotografia, constituem a base da obra em duas dimensões, que, com a união dos objetos, transforma certos espaços em três dimensões. A pintura, que pelo traço é desenho, transforma-se em escultura, mais exatamente, em baixo relevo com o objetivo de traçar os percursos a seguir pelo espetador. Como afirma Marcel Duchamp, "é aquele que olha que faz a obra ". Convido, pois, o espetador, não somente a fazer a obra, mas também para a viver e experienciar.
Os materiais, como opalas da Nova Zelândia, pedras preciosas do Brasil, folha de ouro da Tailândia, selos, diferentes moedas, diversos fragmentos de jornais, placas fotográficas, desenhos, esboços de cadernos de viagem, são reagrupados. Isto permite ao que contempla, percorrer um caminho através de um baixo relevo, um testemunho de um conjunto de fragmentos e de recordações dessas numerosas viagens. Em certos trabalhos compostos de alimentos, como confeitaria ou pastelaria, o espetador é convidado a comer a continuidade do percurso, por exemplo, com um bombom sinuoso que irá acabar o seu curso no estômago do espetador. Assim, levanta-se uma interrogação sobre a noção do consumo da arte. A vista, que devora um traço, não é dominada pelo sentido do gosto de um espetador que come uma linha? A viagem culinária sugere, por conseguinte, uma desmaterialização dessa mesma viagem mental.
Estas peças relacionadas-juntas constituem um testemunho de uma época, de diferentes influências gráficas, visuais e plásticas como num mercado de Tóquio ou Buenos Aires, onde se encontra de tudo: imagens, especiarias, perfumes, cor, estofos, assuntos, fluídos, velocidade, fluxos, circulação, vida....
Na fotografia, que representa uma cena ou um objeto, uma recordação apresentada por ela mesma e para si própria, os meios conjugam-se em género, número e propriedades plásticas que levam o espetador a captar a obra segundo a sua própria sensibilidade.
Tendo trabalhado vários anos com crianças e adultos deficientes, as minhas obras querem-se acessíveis a todos. Elas propõem a um espetador-viajante, privado de visão, que efetue o seu percurso pela tela através de outro meio de leitura, como o tocar, o qual se torna um meio de locomoção que favorece a circulação na obra.
O tocar pode permitir seguir um itinerário feito por uma pintura em relevo, encontrar obstáculos como pedras, terra da América do Sul que vêm interromper o percurso, obrigando o viajante a mudar de rota, de leitura e de itinerário. Este não é, pois, inalterável, mas pertença de cada individuo que fica sujeito a perder-se no interior da tela e partir, assim,ao encontro de diferentes aspetos culturais, naturais ou ao questionamento face a um assunto da atualidade.
Libertar a pintura da sua base e sair dos limites da tela é uma invasão dos lados em que a espessura, as massas ou os objetos laterais quase reclamam a sua autonomia. Se a linha simboliza um percurso a efetuar, o espectador pode, às vezes, encontrar pontilhados, símbolo da descontinuidade da linha, que invocam, assim, um espaço de liberdade no qual o viajante-ator pode perder-se. Já não é um simples espectador, mas um ator do seu itinerário sensorial.
O espetador pode seguir a sua sensibilidade cromática, procurar propriedades plásticas, estéticas, semelhantes em dois materiais. Pode-se, igualmente, encarar o ator segundo a correspondência das linhas verticais. Logo que se encontram, formam um tabuleiro de damas, como um espaço mental regido não por um rigor matemático (desenho), mas por um rigor poético ( pictórico e cromático), o que permite escapar às restrições fortemente ligadas. Isto faz lembrar a exigência de Mondrian: apenas horizontais e verticais carregadas de simbologias fortes que se identificam com o homem pela verticalidade e com a mulher pela horizontalidade, ou Deus e o ser humano. O tabuleiro de damas, meio de medida do Renascimento, é encarado na minha pesquisa plástica como modo de fugir a um destino e a um percurso fixo, ditado e orientado. Mesmo assim, este último. se estiver presente na minha procura, tende a deformar-se ao libertar as linhas restritivas que proporcionam ao espetador-viajante ser ator. A linha serpentina assombra e deambula pela tela, como as serpentinas ou os confeitos de Carnaval. Na época maneirista, foi construído o espaço do quadro como "A Virgem de pescoço comprido" de Parmesan, por altura de 1535. Invoca também a trajetória de uma trilha de caminhada, uma estrada ou caminho. Quando se juntam, as linhas formam um tabuleiro de damas que se torna um espaço de viagem mental que permite ao espetador ser ator e seguir o seu próprio percurso.
Como uma dama de um jogo de damas ou um pião de um jogo de xadrez, o espetador pode tornar-se uma torre, um rei, um bispo ou um outro pião a fim de efetuar essa viagem onírica. Ele é um ponto colocado no tabuleiro de damas, um electrão livre que procura fugir às linhas demasiado restritas que o prendem. A focalização interna vai permitir-lhe tomar o lugar do pião e efetuar o seu caminho, sem ser manipulado por um jogador.
Através de diferentes percursos aos países das formas, dos volumes, dos relevos e outras propriedades plásticas, o espetador é convidado a tornar-se ator da sua viagem pigmentada. O aspeto interativo da obra visa que o viajante se conheça melhor, como uma viagem enriquece aquele que a faz. A utilização dos espelhos permite-lhe, graças ao reflexo da sua imagem e do universo em que está, fazer uma introspecção de si mesmo.